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quarta-feira, 16 de novembro de 2011
quinta-feira, 10 de novembro de 2011
Senioridade e Velhice na Mudança Social
Conferência proferida pelo
Professor Doutor Salvato Trigo na Sessão Solene de Abertura do Ano Letivo da
Universidade Sénior da Póvoa de Varzim
SENIORIDADE
E VELHICE NA MUDANÇA SOCIAL
Lúcio Séneca, nas suas Cartas, aborda
a velhice e a brevidade da vida. O nosso Padre António Vieira também o fez nos
seus Sermões, especialmente, o da Quarta-feira da Quaresma. É, pois, bem antigo
o assunto da velhice, mas este conceito tem o relativismo próprio de quem o
observa. Florbela Espanca, a poeta alentejana, fá-lo no dramatismo do seu dizer
poético, prenunciador da tragédia da sua fugaz e intensa vida.
Porque estamos na Universidade Sénior
“Florbela Espanca”, invoquemos essa alentejana no dramatismo do seu dizer
poético prenunciador da tragédia de sua fugaz e intensa vida.
Citemos o soneto “Velhinha”:
“Se os que
me viram já cheia de graça,
Olharem bem
de frente para mim,
Talvez,
cheios de dor, digam assim:
«Já é
velha! Como o tempo passa!»
Não sei rir
e cantar por mais que faça!
Ó minhas
mãos talhadas em marfim,
Deixem esse
fio de oiro que esvoaça!
Deixem
correr a vida até ao fim!
Tenho vinte
e três anos! Sou velhinha!
Tenho
cabelos brancos e sou crente…
Já murmuro
orações…falo sozinha…
E o bando
cor-de-rosa dos carinhos
Que tu me
fazes, olho-os indulgente,
Como se
fosse um bando de netinhos…”
Estranho certamente nos parecerá que a
voz poética se afirme velhinha nos seus vinte e três anos, todavia já marcados
pelos sinais do tempo invernal da vida, como diria Hipócrates, que associava a
velhice ao Inverno e à idade de 56 anos.
Aristóteles, mais radical, achava que
a velhice começava aos 50 anos, enquanto Santo Agostinho, mais generoso, via-a
apenas aos 60 anos e, no séc. VI, um discípulo deste, Isadoro de Sevilha,
concedia que a velhice só se iniciava aos 70 anos.
Florbela Espanca olhava-se velhinha já
aos vinte e três anos, o que conjugado com as opiniões filosóficas anteriores
poderá sustentar, desde já, a nossa conclusão de que a velhice não é
aionicamente ou evicamente fixada, isto é, não existe uma idade fixa para se
proclamar a vetustez.
Escutemos, entretanto, mais um poeta,
também ele cantor do tempo que deixa marcas em nós. Refiro-me a Rui Knopfli,
poeta luso-moçambicano que embalou seus ritmos nas monçanas águas do Índico.
Assim cantava Knopfli, no seu poema “O
Velho”:
“Não
envelheço. Torno-me antigo.
O Velho
sempre viveu em mim,
sempre o
pressenti no olhar
magoado
demorando-se nas coisas,
em certa lentidão
não premeditada
dos gestos
e nas lembranças confusas
de uma outra
recuada idade.
Sempre
aflorou na mão e na estima
triste que
se estende aos amigos,
na aresta
de desconsolo que espreita
as minhas
horas de amor.
O Velho
sempre viveu em mim.
Eis que,
enfim, o reboco
se lhe
começa a assemelhar.”
Retenhamos a metáfora do reboco a
assemelhar-se à velhice que transparece, para invocarmos Espinosa que definia o
corpo, em sua obra Ética-Parte I, deste modo: “Um corpo é um pedaço de natureza
cuja fronteira é a pele.”
Mas a pele, diz a sabedoria da oratura
africana, “é só o embrulho da alma”, por isso ela esconde tantas vezes
dimensões espirituais e humanas, imperscrutáveis à sensorialidade visual.
Há, como se vê, um semantema comum
entre Espinosa e a sageza negra, na justa medida em que algumas outras
proposições da Ética consideram a indissociabilidade do corpo e da mente.
A proposição n.º 15, por exemplo,
afirma que “A mente humana é capaz de perceber um grande número de coisas, e
fá-lo na proporção em que o seu corpo é capaz de receber um grande número de
impressões.”
E, na proposição n.º 22, Espinosa
acentua ainda mais a função da mente: “A mente humana percebe não só as
modificações do corpo, mas também as ideias de tais modificações.”
Ao considerar indissociável o corpo da
mente e esta, a um tempo, mortal como aquele e, todavia, eterna, não na acepção
temporal da eternidade ou dum tempo sem tempo, mas somente na dimensão de
substância, Espinosa permite-nos compreender melhor a ideia de que a velhice do
corpo não é concomitante da velhice da mente.
Aqui introduziríamos, portanto, a
distinção necessária entre senioridade e velhice, isto é, a diferença entre o
amadurecimento psíquico ou mental (senioridade) e o definhamento biológico
(velhice), em que a pele, como fronteira do corpo, nos revela as marcas
temporais da idade do enrugamento que o saber da experiência feito sulcou, ao
mesmo tempo que nos aconchegamos numa liberdade interior que a memória nos
permite degustar.
A senioridade, como escrevia Knopfli,
torna-nos antigos, mas não forçosamente velhos. Antigos, porque já nos foi
possível tornar o futuro em passado, isto é, já vivemos factos, situações,
espaços e tempos que nos ajudam a relativizar a importância, o interesse e o
valor das coisas.
A senioridade suplanta em nós a
juventude ou a verdura e imaturidade na relação com os outros, na vivência no
nosso habitus, como queria Bourdieu. Ser sénior é ser senhor, é assenhorear-se
do tempo e da relação existencial com os outros a quem se dá segurança pelo modo
como se olha para o mundo. Um modo tranquilo e demorado de ver, uma “lentidão
não premeditada nos gestos e nas lembranças confusas / de uma outra recuada
idade”, como Knopfli poetava, tenha sido essa idade real ou imaginada como
projecção de nós.
A senioridade conduz-nos à senescência
(senescĕre do verbo senĕre = estar ou ser velho) como pórtico de uma nova idade
em que a veterania assoma, apresentando-nos à velhice, como o último ciclo da
vida que nos prepara para o rito de passagem de cá para lá, para que outra vida
possa vir de lá para cá.
É aquele rito de passagem que Platão
tão bem glosou no diálogo Fédon ou da imortalidade da alma, no qual realça a
importância decisiva da morte para a vida, tal como os povos Etruscos já a
entendiam ao cunharem o conceito de munthus, espécie de túnel por onde se vem
do além, do não existente, para o aquém, para o existente, assim se
justificando a vida com a expressão “dar à luz”. Se se vem à luz, é porque se
parte das trevas, ou seja, a vida é extraída da morte, em acto do mais puro
naturismo em que toda a semente só frutifica depois de morrer, depois de
sepultada ou enterrada.
Esse conceito etrusco do munthus
originou o latino mundus, donde tiramos o nosso termo mundo, como significando
o lugar onde se existe, onde tudo existe. Por isso, também dizemos “vir ao
mundo”, para cumprirmos o ciclo vital na roda incessante do tempo como o
intervalo entre o antes e o depois.
É nesta compreensão do tempo que cada
um constrói a sua senioridade, porque esta é, de facto, uma construção pessoal,
individual, em que a nossa casa da vida é feita de materiais mais ou menos
nobres, mais ou menos duradouros, em função do capital de cultura que soubermos
aforrar para investir no momento certo.
A velhice, essa, é uma construção
social, hoje transformada numa instância de germinação dos discursos políticos
e de civilização de comportamentos, infelizmente tão distante da nossa própria
matriz civilizacional, seja ela a greco-latina seja a judeo-cristã. Nesta,
todos nos recordamos da função dos patriarcas; naquela, sabemos bem do papel
dos anciãos e dos senadores.
Foram matrizes em que a velhice era
venerável e politicamente considerada como estádio superior da existência
humana e, como tal, almejável. Em que a velhice era estruturante da organização
social, depositária não só da autoridade pública que o viver mais e, portanto,
o saber mais lhe conferiam, mas também dum estatuto não apenas de referência
outrossim de interpretante do futuro.
É nesta acepção de interpretante do
futuro que vemos investida a célebre figura do Velho do Restelo que Camões
consagrou na nossa própria tradição histórico-cultural:
“Mas um
velho, de aspeito venerando,
Que ficava
nas praias, entre a gente,
Postos em
nós os olhos, meneando
Três vezes
a cabeça, descontente,
A voz pausada
um pouco alevantando,
Que nós no
mar ouvimos claramente,
Cum saber
só de experiência feito,
Tais
palavras tirou do experto peito.”
O Velho do Restelo, todavia, não foi
escutado e as naus do Gama lá seguiram para Calecute, assim iniciando temerariamente
uma história trágico-marítima cheia de “fumos da Índia”, como chamou Afonso de
Albuquerque ao nevoeiro de riquezas que toldou a visão ao rei D. Manuel I, a
partir de cujo reinado, Portugal começou definitivamente a entristecer, ao
mesmo tempo que “o Velho do Restelo” se transformava na metáfora da nossa
fatalidade de desvalorizar a sabedoria daqueles que já viveram o futuro que é
agora o presente dos jovens.
Com o Velho do Restelo tão enquistado
na retórica política, não nos apercebemos da degradação semântica que a noção
concreta de idade trouxe ao conceito nobre de velhice.
Tal degradação inicia-se de forma mais
avassaladora quando, em França no séc. XVI, a idade passa e ser critério de
classificação. Isso ocorreu, porque se começou a registar civilmente os
nascimentos que, antes, eram somente objecto de registo paroquial.
A partir de então, as pessoas começam a
ter idade civil e a existência condicionada, física e psicologicamente, por um
calendário e não mais pelas estações do ano e pelos eventos vários da Natureza
ou da vida social que as integrava.
Dir-se-ia, regressando a Espinosa, que
se separava, por via disso, a mente do corpo, deixando esta de constituir uma
única substância contida numa forma acidentalmente mutável.
Era-se velho, porque se havia atingido
ou ultrapassado a idade convencionada para o início da velhice. E, todavia,
tudo isto era alegoricamente contrariado pelo Velho Testamento e pelos seus
livros do Genesis e do Exodus, em que os patriarcas e, desde logo, Moisés viviam
centenas de anos fecundos.
E, no entretanto, hoje, cada vez mais
olvidados dessas leituras genesíacas, hipervalorizamos a velhice dos objectos e
hipovalorizamos a das pessoas. Àquela conferimos a prestabilidade da decoração
invidiosa ou de ostentação social; a esta, à velhice das pessoas, vemo-la como
imprestável e socialmente pesada e esconsa.
É esta tecnologia da inversão dos
valores que nos vai diminuindo em humanidade e nos torna culturalmente mais
pobres, transformando a velhice quase exclusivamente numa questão de Estado,
não para dela beneficiar do seu conhecimento e das suas competências, antes,
para a tratar como um ónus para a sociedade e permitir que sobre ela se tenha
estereotipado o discurso político.
Essa estereotipia começou, porém, no
séc. XVII, como se comprova pela simples consulta do dicionário de Richelet. Aí
se diferencia a “ velhice masculina” e a “velhice feminina”, sendo que a
velhice dos homens é positivamente valorada por atributos morais e a das
mulheres, pejorativamente pelos aspectos físicos.
Richelet, entretanto, considerava que
quer a mulher quer o homem são velhos depois dos 40 anos e até aos 70 anos, mas
enquanto os homens são agradáveis na sua velhice, as mulheres tornavam-se
“fastidiosas, encarquilhadas, barulhentas”.
Indiferente ao dicionário de Richelet,
o chanceler Bismark, em 1886, estabeleceu na Europa a reforma aos 65 anos,
dando, assim, início a uma cultura social aiônica ou évica, em que a idade
acabou por ser violentadora da nossa relação com os outros e, portanto, geradora
de estereótipos discursivos ou de linguagem.
Para vermos como a linguagem pode ser
traiçoeira em estereótipos da velhice, bastará pensarmos na distorção que
alguns fazem ao ligarem, por falsa etimologia, a palavra “velho” (do lat. vetulus)
à palavra “velhaco”.
Na aparência gráfico-fonética,
parecerá aos incautos que existe algum parentesco entre velho e velhaco,
quando, em rigor filológico, velhaco pensa-se que radique no celta *bakallakos
(pastor, camponês), derivando daí também o francês bachelier “bacharel”; antes,
“jovem que ainda não é cavalheiro”.
Nesta acepção semântica, existe, como
se vê, uma antonímia entre “jovem” e “cavalheiro”; vale dizer que o
cavalheirismo é uma daquelas dimensões da senioridade, porque construção de nós
próprios, que nos torna mais estimados na velhice, aquela idade em que, nas
sociedades hierarquizadas, se ganha o estatuto gerontocrático ou do poder dos
mais idosos.
Mas esse poder não se determina por
qualquer manifestação democrática, antes se conquista pelo respeito e pela
autoridade que os menos idosos reconhecem a quem a “universidade da vida”
formou pelo trabalho honesto e dedicado, por exemplo, à ética ou aos valores
individuais de comportamentos solidários.
É poder que os povos de Bambara, na
África ocidental, traduzem eloquentemente no aforismo: “Em África, quando morre
um velho, enterra-se uma biblioteca!” Fica-se, portanto, mais pobre.
E entre nós: não haverá, antes, mera
reacção de alívio, de desoneração da voz do sentimento ofuscado pelo
racionalismo egoísta? Que aproveita, hoje, a nossa sociedade do saber de
experiência feito, como cantava Camões, daqueles que têm na memória dos tempos
os registos do que vale e do que não vale a pena viver?
E ao mesmo tempo que têm a memória do
passado, umas vezes saudosa, outras revoltada, também têm alguns deles a
memória do futuro desejado para os netos, para quem os avós deveriam voltar a
ser mais avós e menos amas, mais pedagogos (no sentido etimológico da palavra
grega de orientador de crianças) e interventivos na construção da personalidade
e do carácter que, moldados na primeira infância com rigor, gerarão
necessariamente cidadãos mais conscientes da função que devem ter na mudança
social e na transformação positiva da sociedade onde nos cabe viver.
Olhar para os avós na perspectiva de
que a sua denominação carinhosa significa aqueles que vieram antes e que
receberam de trás os ensinamentos e valores de vida a que chamamos vulgarmente
“tradição” (trahěre> traditio), isto é, aquilo que transportamos connosco do
passado para antecipar o futuro, ligando as duas dimensões do tempo (esta,
fictiva; aquela, factual) em que se sustenta a moral, ou seja, o respeito pelos
bons costumes, sendo destes o mais sublime o mandamento maior da nossa
humanidade cristã: amar o próximo como a si mesmo, depois de honrar o pai e a
mãe!
Só assim, na vivência plena da
liberdade para amar e ser amado, sem a coisificação do amor, antes no respeito
pela idiossincrasia do outro, que é sempre um outro e nunca a metade dum nós,
porque não há caras-metades, naquele sentido em que ou se tem a cara toda que é
a nossa ou não se tem e, então, é-se descarado, só assim, sem anulação do outro
por um eu possessivo, como se a pessoa fosse um objecto que se tem para uso
exclusivo ou para vantajosa transacção, só assim, poderemos ajudar com a nossa
senioridade e velhice tranquilas à mudança social que urge ser feita, para que
viver em sociedade não seja, como às vezes parece, punição do criador, antes, a
fruição do intervalo que nos coube para existirmos.
Se antes não puderam fruir tanto e tão
bem o vosso intervalo existencial, aproveitem agora este tempo de universidade
sénior para franquearem a fronteira do pedaço da natureza que é o corpo, na já
vista acepção da ética de Espinosa, deixando que por essa raia, que é a pele,
se liberte a vossa espiritualidade, o lado de dentro do vosso eu, que,
certamente, envolto em silêncio sabe que, se falar livremente com o corpo,
envelhecerá mais tranquila e pausadamente.
A senioridade está em nós, mas a
velhice está apenas no olhar de quem nos vê. Ser velho é uma inevitabilidade
biótica: estar velho é uma maleita pessoal de todos aqueles que desprezam Eros,
o deus da Vida, para deixarem livre acesso à insinuação das Parcas.
É necessário, para nos curarmos dessa
maleita, um choque cultural? Não o adiemos mais, porque o país está a fenecer
de pessimismo, de falta de alegria de viver, e nós precisamos de não continuar
agarrados à grandeza do que fomos, sonhando com distâncias e impérios,
insinuados pelo mar que tanto nos atrai para sulcarmos águas que Pessoa, na
Mensagem, sentia salgadas das lágrimas de Portugal!
Navegar é preciso, já não nas salsas e
lacrimosas águas do império, que se desfez, mas no mar interior de nós,
buscando um bom porto para acostar a nossa memória e imaginarmos outras
partidas, porque viver também é preciso, como Fernando Pessoa tão bem soube
dizer! Mas chorar não é preciso!
Gaudeamus, igitur! (Portanto, alegremo-nos!)
Salvato
Trigo
quarta-feira, 2 de novembro de 2011
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