Aos participantes na Conferência
Interdistrital do Rotary Internacional, Exponor, 23 de fevereiro de 2013
D. Manuel Clemente, Bispo do Porto
Sobre a paz, disse Santo Agostinho que
é a “tranquilidade da ordem” (A
Cidade de Deus, XIX, 13) e julgo ser definição a reter nos nossos dias, para
permanentemente a construirmos. Refiro uma ordem que significa justa ordenação
de cada parte e não mera armadura exterior de segurança.
Disse “permanentemente a construirmos”, pois não é coisa garantida para
sempre, quando aparentemente exista, nem nos dispensa de uma atuação constante,
atenta e comprometida. Também se diz biblicamente que “a paz é obra (fruto) da justiça”.
Comecemos então pela justiça, virtude
que nos manda “dar a cada um o que lhe é
devido”. Felizmente muito se avançou no campo dos direitos formalmente
reconhecidos, da segunda metade do século XVIII até aos nossos dias
(Declarações de Direitos Norte Americana e Francesa, Declaração da ONU, 1948…).
Mas não podemos esquecer que tais declarações demoraram e demoram muito a
concretizar-se na prática das sociedades. Como infelizmente constatamos que,
nos séculos XX e já XXI, se sucederam atrocidades várias e a uma escala nunca
vista…
É realmente importante que, em termos
de ideias e regras subscritas, tenhamos atingido aquelas plataformas de
direitos. O contrário seria a descrença na natureza humana, como realidade
básica e comum da nossa dignidade a salvaguardar e o regresso à lei do mais
forte, ainda verificável aqui ou ali (demasiados “aquis” e “alis”,
infelizmente).
Acontece que, neste ponto, se revelam
as contradições da globalização crescente da vida mundial, fenómeno irrecusável
mas ambíguo. Desde que o nosso Gama abriu a ligação marítima e direta entre a
Europa e a Índia, coeva da “descoberta”
europeia da América, a mentalidade geral foi olhando o planeta como um todo,
ainda que cheio de contrastes - que eram outros tantos desafios a alargar o
próprio conceito da nossa humanidade compartilhada. A revolução industrial, a
busca de matérias-primas, o desenvolvimento dos transportes e das comunicações,
agora instantâneas, tudo nos levou ao que somos hoje, como ideia e
representação de nós mesmos, neste sentido “globais”.
Todavia, estes fatores que podemos
considerar positivos, têm o seu lado problemático, quando tornam as sociedades
mais “fracas” muito vulneráveis aos
interesses externos, e quando nos fazem passar rapidamente demais do plano
individual ao geral, sem ter em conta o que está mais ao pé e deve ser
localmente resolvido. Usando linguagem evangélica, podemos dizer que está em
causa precisamente o “próximo”, a
proximidade ativa e responsável.
O horizonte geral que a globalização
nos foi dando é inquestionavelmente um bem, propício até ao reforço da
solidariedade internacional. Mas o alheamento do que diretamente nos rodeia põe
em causa um outro princípio indispensável, a subsidiariedade, que sempre requer
a participação de cada parte interessada, ou corpo intermédio, na resolução
social que se pretenda. Só na conjugação da solidariedade geral com a
subsidiariedade das partes se dá verdadeiramente a cada um o que lhe é devido –
em termos de reconhecimento, oportunidade e estímulo -, ou seja, se garante a
justiça, cujo fruto é a paz.
As repercussões são óbvias, em campos
tão variados como as famílias, os grupos socioculturais de pertença, as
associações de todo o género, as autarquias, as escolas e tudo mais de
interesse público, etc. Se estas realidades – que são outras tantas dimensões
da nossa personalidade e essência relacional forem desativadas por qualquer
imediatismo generalizador, nacional ou multinacional que seja, a paz correrá
graves riscos, porque nem se respeita a ordem correta das coisas nem se
reconhece e proporciona a cada um o que lhe é devido.
Sem olhar negativamente demais para o
nosso caso português, podemos detetar elementos positivos a este respeito, como
sejam as concretizações associativas que perduram – sabe Deus com quanta
abnegação de muitos! -, ou aparecem entretanto, com múltiplas incidências na
sociedade e na cultura. – O que seria de nós, por exemplo, se, além do Estado
Social que vai subsistindo quanto pode e temos certamente de defender e
promover, faltasse esta capacidade demonstrada de atendermos mais
espontaneamente às necessidades acrescidas?
Mas temos de reconhecer que a nossa
vida coletiva se faz ainda e muito – crescentemente até? – do topo para a base,
quando melhor seria que acontecesse, sobretudo ou também, das periferias para o
centro. Do topo para a base, usando ainda terminologia de tipo vertical e descendente,
típica de tempos e sociologias que afinal não estão tão ultrapassadas como
julgaríamos…
Não foi assim há tanto tempo que se
deixou de falar do “Senhor Governo”,
que alguns pensavam ser realmente alguém que tudo decidia em sítio algo mítico
(num “Terreiro do Paço”, que já nem o
era desde o século XVIII…). E a mentalidade ainda se pode manifestar, de baixo
ou de cima, mesmo em tempos felizmente democráticos e com eleições livres e
periódicas.
É verdade que a mediatização geral da
informação e da resposta pode potenciar tal facto, por dar a ideia de que as
coisas se resolverão mais depressa, em ligação direta topo - base e vice-versa.
A própria internacionalização ou mundialização de muitos aspetos da vida
socioeconómica, política e até particular, parece requerer este tipo de
atuações, indo logo a Bruxelas ou a Nova Iorque, passando ou não por Lisboa.
Mas a pergunta deve fazer-se: - É assim, predominantemente assim, que se
resolverão humanamente as coisas?
Pergunta tanto mais insistente, quando
verificamos que o tratamento de qualquer assunto pelo geral dilui a densidade
pessoal das sociedades e rapidamente desmotiva as cidadanias. Entre o topo e a
base, quase nada sobra de intermédio, para não “atrasar” soluções nem perder tempo, como se o tempo nos fosse
completamente exterior e não uma dimensão essencial do ser humano e relacional.
E o problema é deixarmos de ser
sociedades propriamente ditas, isto é, grupos de “sócios”: palavra latina que se traduz por companheiros,
colaboradores, pessoas entre pessoas e umas com as outras, para manter e
alcançar desígnios comuns.
Não é uma fatalidade que tal aconteça.
Afinal, basta-nos ser realistas e olharmo-nos como realmente somos, ao ritmo da
vida que acontece. Geralmente, nem nascemos desvinculados nem crescemos
anónimos, mas sim uns pelos outros, uns com os outros e uns para os outros,
família a família, terra a terra, caso a caso. Crescemos e vivemos nas
periferias das nossas delimitações e responsabilidades imediatas e
inalienáveis, em recortes sociais mutuamente abertos e por isso relacionados
com os centros comuns das nossas periferias mais amplas, nacionais ou
internacionais que sejam. Mas assim mesmo somos e devemos ser. Por isso temos
nomes e apelidos, irredutíveis a um numeral qualquer.
E é por isso, caros rotários, que tudo
quanto aproxime e suscite solidariedades, ou ative proximidades, é vital para a
paz e a harmonia pessoal e interpessoal. Numa ordem que não virá de fora, mas
da conjugação vital de todos e de cada um, nas múltiplas expressões que a sociabilidade
alcança. Quanto mais globais, mais participativos, para encontrarmos soluções à
altura das atuais questões. Aliás, e humanamente falando, nunca nada se
resolveu inteiramente sozinho.
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