Homenagem ao Dr. Afonso Fernando
16 de Setembro de 2010
Rotary Clube da Póvoa de Varzim
Hotel Axis Vermar
Dr. Afonso Fernando
Meu Caríssimo e Queridíssimo Amigo
Convidaram-me (convite que agradeço e me honra) para participar nesta reunião-jantar do Rotary Club da Póvoa, que se realiza no dia em que um dos seus fundadores e antigo presidente, o Dr. Afonso Fernando, completa 90 anos e incumbiram-me de dizer algumas palavras.
A presença nesta reunião-jantar, de não rotários, profanos, portanto, que é o meu caso, não lhe retira – penso eu – carácter formal.
Como não conheço as liturgias, o meu pedido de desculpas para se, eventualmente, as não observar.
Acontece, como o meu querido amigo Dr. Afonso, sabe – e os restantes convivas que me conhecem também – que eu não sou orador, conferencista, pensador, escritor.
No entanto, face ao convite e à razão de ser dele, não poderia nunca, rejeitar a incumbência.
Escrevi, para não me enganar muito, um texto, onde empenhei as minhas capacidades para corresponder à honra que o convite representa e a grande estima e amizade que devoto ao Dr. Afonso Fernando.
Pretendi, em sua homenagem, já que é disso que se trata, reflectir sobre o tempo – 90 anos para o Dr. Afonso, 80 para mim – que nos coube viver.
Concluí que apesar dos dez anos que nos separam e de não nos conhecermos nem convivermos nos seus primeiros 40 e nos meus 30, vivemos situações em cenários – menos no serviço militar – quasi decalcados a papel químico. O que mostra a estaticidade da sociedade de então.
Quiseram aqueles acasos que a vida nos proporciona, que eu viesse para a Póvoa exercer por uma ano uma profissão que eu não pensava exercer – Notário. E acabei por cá estar profissionalmente 21, e a residir, pelo menos até hoje.
Nessa altura o Dr. Afonso Fernando era, dos seis juristas – vou repetir, seis juristas – o único que exercia exclusivamente a função de advogado.
Convivemos, diria, diariamente, no exercício das nossas profissões.
Pelas afinidades naturais e temperamento, desenvolvemos uma convivência, que para mim foi profícua, amiga, enriquecedora.
Pelas afinidades naturais e temperamento, desenvolvemos uma convivência, que para mim foi profícua, amiga, enriquecedora.
Enriquecedora porque pragmática, clara, eficaz, incisiva, concisa, essencial;
Amiga porque camarada, alegre, xistosa, sarcástica, cáustica quanto baste.
Responsável e solidária, sempre.
O Dr. Afonso Fernando tem aquele dom raro de pressentir as dificuldades ou embaraços dos amigos e sem que ninguém lho solicite, aparece, aconselha, brinca, às vezes, mas colabora e apoia quanto e enquanto for necessário.
Faço votos, sinceros, para que, daqui a 10 anos, quando eu chegar aos 90, invertamos os papéis: eu esteja aí sentado e o senhor neste lugar.
Minhas Senhoras
Meus Senhores
I
1
Nasci em 24 de Maio de 1931, um domingo, em S. Pedro de Rates, muito próximo da Igreja Românica – construída no tempo em que este território integrava o Reino de Leão, por D. Henrique e D. Teresa – e os sinos repicavam, alegremente… para a missa do dia.
Enquanto eu gritava o meu protesto, ao chegar a este mundo, um menino, nascido em 16 de Setembro de 1920, nesta cidade, a quem foi dado o nome de Afonso, preparava-se, ajudado e carinhosamente açodado por sua mãe, para a catequese, ministrada por uma D. Aninhas que, diligente e proficientemente, cumpria a missão de lha memorizar.
E o nosso menino Afonso já sabia, sem hesitar, quem é Deus, já marinhava com toda a facilidade pelo mistério das Três Pessoas da Santíssima Trindade, que afinal … era só uma;
Sabia a Confissão e o Acto de Contrição, porque confessava os seus pecados, sem ocultar nenhum, para poder comungar nas primeiras sextas-feiras;
Sabia o Credo porque tinha de o recitar na Missa Dominical, em coro com os seus companheiros;
E sabia também, na ponta da língua, o elenco de todos os pecados veniais e mortais, e não tinha dúvidas quanto ao destino da sua alma, se cometesse algum: Purgatório ou Inferno.
Apesar destas prevenções e destes conhecimentos, é bem possível que já na altura desejasse cometer alguns. E todos adivinhamos quais.
Mas esse desejo tinha que ser imediatamente afastado, pois se não o fosse, se demorasse, incorreria, sem proveito, nas tais penas do Purgatório ou Inferno, pintadas nas pagelas e descritas com todo o realismo e horrores pelas Senhoras Catequistas, o que paralizava, até, os mais afoitos.
Depois da missa, o almoço melhorado por ser domingo, a reza da tarde, as brincadeiras pelo meio, e os tabefes adequados e oportunos para manter o respeito e a ordem.
2
Na segunda-feira, livros, cadernos, lápis, régua e borracha na sacola – esqueci-me da ardósia –, lá vai para a Escola. Já lê e escreve com desenvoltura, faz as quatro operações porque já sabe cantar a tabuada, até a dos nove!
Depois, vai saber de cor as linhas férreas, os ramais, as estações e até os apeadeiros;
Os rios, os seus afluentes, da margem esquerda e da direita, onde nascem e desaguam – do continente a até das colónias;
Os reis, as rainhas, os infantes, os conquistadores, os descobridores, os navegadores, as batalhas, contas com fracções e muito mais.
Quarta classe concluída, doutrina pequena e grande, primeira comunhão, cruzada e comunhão solene, tudo devidamente certificado por diploma, está apto, o nosso Afonso, para ingressar no Liceu Eça de Queirós, aqui na Póvoa de Varzim.
É um privilegiado.
Liceu, nesse tempo, só nas capitais de distrito e mais duas ou três outras cidades.
Mas na Vila da Póvoa de Varzim, já havia Liceu, até ao 2º. Ciclo, Escola Comercial e dois Colégios, um masculino, do Padre Dr. Pontes, outro feminino, das freiras Doroteias.
Ambos com Pensionato.
Os meninos e meninas do interior precisavam dos ares marítimos; logo tinham à sua disposição, estes estabelecimentos de ensino que lhes ministravam a educação adequada.
3
No Liceu despejam-lhe mais uma boa dose de Ciências Naturais, Física, Química, História, agora dita Universal (mas é só de parte da Europa), com mais Reis e até Imperadores;
Ensinam-lhe Francês, Inglês… e Latim.
No Porto, completa o ensino Liceal com Filosofia, mais Latim e qualquer coisa mais.
4
Munido de todos estes saberes, pode matricular-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Mas não lhe agrada o ambiente escolástico, abafadiço, mofoso, da vetusta e velha Universidade.
Após o 1º. ano, troca-a pela Faculdade de Lisboa – (ao tempo só existiam as duas Faculdades de Direito) – que sempre era mais nova, pois tinha sido fundada uma década antes.
Mas os códigos são os mesmos; as sebentas são igualmente sebentas; e os professores eram oriundos da Faculdade que ele deixou.
Sem dúvida que o Tejo tinha muitíssimo mais água!!!
O Mondego, o “basófias”, nessa época, no Verão, era só areal, e, no Inverno, cheias de arrasar tudo.
E Lisboa tinha muitos mais eléctricos, muitas mais ruas, muitas mais casas, muitíssimas mais pessoas.
E se as guitarras, em Coimbra, trinavam na Sé Velha e dizia-se – eu nunca ouvi, nem os rouxinóis – no Choupal, em Lisboa era na Casa da Mariquinhas. Sempre seria mais agasalhado.
5
Uma década depois, lá vou eu fazer o mesmo percurso: doutrina, comunhões, Liceu Eça de Queirós, Liceu no Porto, Faculdade de Direito de Coimbra, onde me mantive.
Pisei as mesmas pedras das ruelas da Alta, que o camartelo poupara; franqueei as Portas Férrea e de Minerva, atravessei, sempre muito apressado, a Via Latina, entediei-me nas aulas, chalaceei nos gerais.
Nunca deixei de invectivar a “Cabra”, quando a ouvia, até sair, pela Porta Férrea, com um canudo de Lata, contendo um pergaminho com selo e fita vermelha, escrito em Latim,
onde o “Universitatis Prorector”
afirmava, entre outras coisas, que eu era
“Licentiae gradu in Jurisprudentiae Facultate”.
E com isto me fui à vida.
6
Em traços propositadamente caricaturais – e a traço bem grosso – procurei caracterizar a sociedade vigente à época em que o Dr. Afonso Fernando e eu, com um intervalo de uma década, fizemos os nossos percursos escolares, desde a Escola primária, ao Liceu e Universidade.
Vivíamos numa sociedade a que alguém apelidou de “Sociedade Tradicional”, que se caracterizava por conservar, por preservar.
Conservava e preservava as formas e as relações tradicionais de trabalho, o modo de produção e, consequentemente, de viver, de sentir, de conceber a própria vida.
7
Depois do impacte provocado pela Revolução Republicana de 1910, ocorrido, respectivamente, dez e vinte anos antes dos nossos nascimentos – do Dr. Afonso e meu –, o esforço revolucionário de renovação da Sociedade Portuguesa foi travado pelo 28 de Maio de 1926.
O poder que emergiu deste golpe militar eliminou a contestação e promoveu e instituiu uma sociedade onde não se interrogasse, nem o presente, nem o passado, nem o futuro.
Uma sociedade em que o grupo detentor dos privilégios, e portanto do poder, só aceitava as alterações, substituições ou reformas que permitissem e facilitassem a instalação de alguns sectores – certamente os mais lucrativos – de indústria e comércio modernos.
Industrialize-se, promova-se o crescimento económico, mas não se altere a hierarquização dos vários extractos populacionais, as posições e relações familiares, as regras, os hábitos da vida quotidiana, as estruturas e as formas do poder político.
A super-estrutura jurídica instituída pela Constituição de 1933 dá resposta a estas aspirações, criando e permitindo a introdução na ordem jurídica, de legislação legitimadora e propiciadora de instrumentos adequados à satisfação desses interesses.
E as duas Faculdades de Direito, de Coimbra e de Lisboa, entregavam todos os anos à sociedade portuguesa, o número suficiente, não mais, de indivíduos do sexo masculino e um número ínfimo do feminino, instruídos na interpretação e aplicação das leis mantenedoras do “stato quo”, que iriam exercer essas funções, do Minho a Timor, passando por Goa, Damão e Diu.
E assim, com a PIDE a investigar, a G.N.R. a carregar e os Plenários a condenar, vivíamos, como costuma dizer o Dr. Afonso, “na Santa Paz do Senhor”
8
Mas como era possível conservar e preservar as estratificações e relações sociais, as posições e relações familiares, as estruturas e formas do poder político, quando, terminado o pesadelo da 2ª. Guerra Mundial, o mundo todo tinha, necessariamente, por força das circunstâncias e pela natureza das coisas, de se reconstruir, de se reorganizar;
E como nada era como antes, nada poderia se feito seguindo os modelos existentes antes dessa hecatombe mundial.
Pela primeira vez – e única vez – se utilizaram duas bombas atómicas.
Nem a guerra futura poderia ser igual. As guerras do período moderno foram sempre conflitos armados entre Estados soberanos. Mas à medida que os Estados perdem soberania, emerge uma nova forma supranacional que implica uma nova concepção da guerra.
9
Cá, em Portugal, lentamente, muitíssimo lentamente, a industrialização e a construção civil vão produzir mutações nos extractos populacionais, que, por sua vez, vão reflectir-se na estrutura familiar, nas relações sociais e pessoais, na educação, na economia.
E a estrutura jurídica, sempre estática e conservadora, mantém-se irredutível na manutenção e preservação dos valores que a enformam.
Mas apesar dos diques, das barreiras que os detentores dos privilégios constroem, umas grosseiramente reais – pide, censura, proibições de toda a ordem – outras subtis e sofisticadas, a verdade, a realidade, é que o homem cresce e desenvolve-se. E, ao fazê-lo, vai-se libertando, e, consequentemente, a sociedade em que está inserido vai-se transformando.
E dizia alguém, que eu agora não posso identificar, que o Homem cresce como indivíduo libertando-se: primeiro do seio da mãe, depois dos seus braços, depois da sua mão. Até que, um dia, pode caminhar por si mesmo e, o que é mais importante, escolher e traçar o seu próprio caminho.
E depois, de um modo tranquilo, às vezes, outras violento, liberta-se das múltiplas formas de opressão e exploração das angústias, dos medos, dos mitos.
E no 25 de Abril de 1974 foi o que aconteceu. De um golpe, lançamos pela borda fora, os mitos, os ídolos, as opressões, os medos, as angústias.
Mas a Revolução com que muitos de nós sonhámos ficou a haver. Vinha atrasada 50 anos; estava irremediavelmente fora de tempo e do contexto. Até a luta de classes. Hoje são multidões indiferenciadas, reivindicativas, que se agregam, ocasionalmente, de forma multitudinária, a pretexto de um interesse ou acontecimento, em muitos casos até bem efémero.
Mas sempre – através da História o sabemos – se renovam e renascem formas de opressão, novas formas de exploração; criam-se e desenvolvem-se novos medos, novas angústias, novos mitos.
E o esforço de libertação renasce!!!
E se olharmos mais uma vez para a História, verificamos que, cada vez são mais os que se libertam; são cada vez mais os que participam na invenção – pois é disso mesmo que se trata, de inventar, dado o fracasso evidente ( ou o esgotamento) das ideologias vigentes.
Morreram as grandes narrativas!!!
Perderam força de convicção.
Mas, dizia eu, são cada vez mais os que, consciente ou inconscientemente, participam na invenção de um sentido para este gigantesco – porque universal – processo histórico colectivo que nos coube viver.
Nós, que somos filhos da Revolução Francesa, estamos órfãos. E como todos os órfãos, sentimo-nos abandonados, desorientados, sem rumo, à procura do caminho.
Porque os valores que dela emergiram – da Revolução Francesa – e estruturaram e regularam e orientaram, nestes últimos duzentos anos, a nossa organização política, social e económica, esvaíram-se por esgotamento e exaustão.
Talvez a crise da democracia não tenha a ver só com a apática indiferença pela coisa pública, com a corrupção;
Talvez a crise da democracia não tenha a ver só com a insuficiência e a inadequação das suas instituições para as práticas a que estão destinadas,
Talvez tenha mais a ver com o facto
de não ser claro o que significará democracia num mundo a caminhar rapidamente para a globalização.
Há quem pense que a globalização promove a democracia e, naturalmente, quem pense o contrário.
O que me parece claro é que a democracia – ou melhor, o sistema político vigente, de um modo geral, no espaço geográfico que denominámos “Ocidente” – confronta-se hoje com uma mudança de escala.
Concebida e institucionalizada para o Estado-Nação, a democracia vê hoje alargar-se o seu espaço geográfico e, concumitantemente, uma diminuição da soberania.
10
E, por tudo isto, entramos na “Era do Vazio” (Gilles Lipovetsky). Na era do individualismo e – vou citar – “que nos arranca à ordem disciplinar – revolucionária – convencional”. Em ruptura “… com as sociedades modernas, democráticas – disciplinares, universalistas – rigoristas, ideológicas – coercivas”.
Vivemos n’ “uma sociedade flexível, assente na informação e na estimulação das necessidades, no sexo, no culto da naturalidade, … da libertação pessoal, da descontracção, etc. etc. etc.”
Vivemos, hoje, naquilo que, de modo muito vago, fluído e impreciso – porque ainda ninguém sabe bem o que é – se denomina sociedade “pós-moderna”.
“A Filosofia não pode nem deve ensinar para onde nos dirigimos, mas sim a viver na condição de quem se não dirige a parte nenhuma” (Vattimo).
Porém, há mais de um século já Tocqueville previa e previria “ a partir do momento em que perderam a esperança de viver uma eternidade dispuseram-se a agir como se não tivessem para viver senão um só dia”.
11
Àqueles que, no século XVIII lutavam por instaurar a democracia, os cépticos de então, contrapunham que o regime democrático só foi possível no quadro limitado da polis ateniense; e que era impossível praticá-lo em territórios tão vastos como o dos modernos estados.
Também os cépticos de hoje, invocando as diferenças culturais, religiosas e antropológicas, os níveis civilizacionais, as dimensões territoriais e até de ordem climática, consideram impossível um mundo democrático globalizado.
Mas, como não era possível no século XVIII aplicar o modelo ateniense à escala nacional, também hoje, não é possível transpor, sem mais, para a escala global, os modelos institucionais nacionais da democracia.
Estas inadequações das estruturas políticas democráticas ao inelutável processo de globalização e a perda de soberania do Estado-Nação – estou a referir-me à Europa – que não foi transferida para nenhum órgão comunitário supra-estatal, criaram ambiguidades, indefinições e paralisações políticas perturbadoras e impeditivas da vida na comunidade.
A estas inadequações das estruturas políticas democráticas, talvez mantidas para se aproveitarem das indefinições e das desregulações propiciadoras de oportunismos, ou, talvez propositadamente criadas e mantidas para que o Estado mais forte exerça o seu domínio sobre todos os outros, vêm juntar-se, hoje, as ainda imprevisíveis, mas já devastadoras e trágicas consequências da crise financeira e económica.
E a convergência destas três crises, potenciando-se umas às outras, cada uma causa e efeito de todas, é, no meu entender, uma situação nova, que aqueles que estão a chegar ao mundo ou os que ainda nele actuam – o que já não acontece comigo nem com o Dr. Afonso – terão que enfrentar. E, tal como disse atrás, terão de inventar.
O mundo está cada vez mais policêntrico.
Se não é possível “banharmo-nos duas vezes na mesma água do rio”, como dizia o filósofo lá na Antiguidade Clássica, como será possível solucionar os problemas de hoje com as receitas que foram responsáveis por esses mesmos problemas?
Os cavalos dos cavaleiros da crise já escarvam as lajes do átrio do cenáculo e, lá dentro, os sacerdotes do templo, trancados, discutem… o sexo dos anjos!!!
O que fazer, perante isto, se a união europeia está a morrer de morte lenta a caminhar para um desastre?
Respondo-vos com uma frase que roubei a Mário Soares num artigo que acabo de ler:
Mas, caramba, há que reagir!
Joaquim Cancela
Sem comentários:
Enviar um comentário