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sábado, 17 de outubro de 2009

Abertura Solene da Universidade Sénior da Póvoa de Varzim - 16/10/09 - O texto da Aula

Dra. Maria da Conceição Nogueira, palestrante - Dr. Luís Diamantino, Vereador da Cultura da CMPV - Miguel Loureiro, Presidente do Rotary Club da Póvoa de Varzim e Inspector Serafim Afonso, Coordenador e Director Pedagógico da USPV.
Cada vez mais as Universidades Sénior proliferam pelo país, como resposta da “sociedade civil” em parcerias com o poder autárquico, às novas necessidades de apoio à 3ª idade.
Ontem, no Auditório Municipal, na "Abertura Solene" da Universidade Sénior da Póvoa de Varzim, patrocinada pelo Rotary Club da Póvoa de Varzim, ouvimos da Dra. Maria da Conceição Nogueira um belo texto literário, em homenagem ao professor em geral e em particular aos professores reformados que em regime de voluntariado, acrescentam mais-valia aos utentes e cidadãos com direito à ginástica intelectual, à fuga ao isolamento e à felicidade do dia-a-dia.
E porque a “aula” tem uma qualidade literária de registar, registámo-la aqui, como leitura obrigatória.
Dra. Maria da Conceição Nogueira
PRESENTE – PASSADO – FUTURO - Intertexto literário e de experiência pessoal
«Perfeito é não quebrar
A imaginária linha.»
«Pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto
Sem jamais perderem o fio de linho da palavra.»
É sob a epígrafe destes versos de Sophia de Mello Breyner, essa Deusa da Palavra, que inicio esta modesta intervenção, para, dentro das minhas possibilidades – prestar homenagem ao Professor, essa figura tão ensombrada, objecto de tantas polémicas, neste mundo labiríntico e conflituoso em que nos encontramos.
Retomando a epígrafe inicial deste texto, quero sublinhar que contra este mundo caótico surge a voz de Sophia com a sua palavra feita de «fio de linho».
«Pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto
Sem jamais perderem o fio de linho da palavra.»
Palavras feitas de “fio de linho” – fio inquebrável, incorruptível, fio de que é feita a “túnica sem costura” – tecido divino, puro, subtil.
Quer dizer, as palavras de Sophia revestindo-se da pureza e consistência do linho, revelam-nos a inteireza do seu ser e a fidelidade à demanda de um Reino:
«Perfeito é não quebrar
A imaginária linha.»
À demanda de um Reino, Reino que se opõe a habitat, o mundo em que vivemos.
Reino é aquele que cada um constrói e conquista, é a aliança que cada um tece na demanda de algo sem limites, impulsionado por um crescente desejo de conhecer, por uma paixão sempre insatisfeita.
Cito ainda Sophia:
«As imagens atravessam os meus olhos
E caminham para além de mim.»
«Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor.»
Neste mundo conturbado em que vivemos, no habitat em que nos sentimos fechados, a poesia de Sophia transporta-nos para um mundo de amplidão, de claridade – um mundo de sentido misterioso, em que as fontes de inspiração surgem transformadas em exemplos de pureza, de perfeição, de harmonia.
Mas, porquê citar Sophia de Mello Breyner?
É que para Sophia escrever é uma missão, tal como conhecer é um anseio de partilha com os outros:
«A poesia (…) pede-me que viva sempre, que nunca durma, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.»
É que Sophia vive sempre atenta para “dar nome às coisas”, denunciá-las, descobrir-lhes o sentido:
«Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha.»
Eis a sua Inscrição, isto é, o seu compromisso com a realidade circundante, o seu profundo empenhamento, a sua constante disponibilidade.
Não deverá ser esta também a Inscrição do Professor?
O mundo que Sophia nos aponta não servirá de paradigma para o transmitirmos aos que nos sucedem?
Após este momento de reflexão, proponho uma “viagem” através de significativos, melhor, plurissignificativos textos literários que, cruzando-se com a minha experiência docente, documentarão a temática proposta – PASSADO – PRESENTE – FUTURO.
Esta trilogia temporal, inserida, aliás, nos conteúdos programáticos escolares, além de ser uma das preocupações básicas de todo o ser humano, constitui uma manifestação evidente desde a Arte Clássica até à Modernidade, continuando no tempo actual.
Assim, Horácio, poeta latino, que viveu no século I a.C., finaliza o seu III Livro das “Odes”, dizendo: “Acabei um monumento mais duradoiro que o bronze, mais alto que as pirâmides: nem a chuva que desgasta, nem o vento desabrido o poderão destruir, nem a sucessão interminável dos anos ou a fuga do tempo. Não morrerei completamente: uma grande parte de mim mesmo escapará à Morte. Crescerei continuamente, e a posteridade, pelos seus elogios, conservar-me-á jovem.
Este pensamento e “modus vivendi” horacianos vão ressurgir no Modernismo, em Ricardo Reis, o heterónimo neoclássico de Fernando Pessoa, que adoptou para a sua produção poética o mesmo título da do escritor latino – “Odes”. Aliás, era este o seu livro de cabeceira.
Assim, numa das Odes reisianas, ler-se-á:
«Seguro assento na coluna firme
Dos versos em que fico,
Nem temo o influxo inúmero futuro
Dos tempos e do olvido.
(…)
Assim na placa o externo instante grava
Seu ser, durando nela.»
Ambos os textos que acabamos de ler reflectem a concepção da imortalidade do Artista através da obra realizada. Quer dizer, o Presente inclui não só o Passado como também o Futuro.
E até Álvaro de Campos, o “poeta sensacionista e por vezes escandaloso”, como o define o próprio Pessoa na sua conhecida carta a Casais Monteiro, sobre a génese dos heterónimos, até Álvaro de Campos – o mais modernista dos diversos “eus” ou “não-eus” de Pessoa, o engenheiro naval, autor de um extenso cântico ao Progresso – a “Ode Triunfal” – onde exalta a máquina, a velocidade, a força mecânica, admite a fusão de todos os tempos num único – o Momento absoluto:
«Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro.
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro.»
Ocorre-me neste momento o controverso conceito de Saudade de Teixeira de Pascoaes, alvo de juízos tão contraditórios. Eis uma citação de uma das suas obras “Regresso ao Paraíso”, definindo a “lírica Figura” da Eva paradisíaca:
«Sou a esperança, ou antes a saudade:
A esperança é saudade do futuro,
A saudade é esperança no passado.»
Quer dizer, a saudade tem um poder presentificador, tanto do passado como do futuro. Se o que foi ainda é, por virtude da memória; o que há-de ser, já é, por virtude da fantasia. Em resumo, Saudades do que foi e do que há-de ser.
Não poderia continuar este percurso literário sobre a “presença da ausência”, sem citar um conhecido excerto do “Prefácio dos Azulejos do Conde de Arnoso”, em que o imortal escritor poveiro, Eça de Queirós, nosso conterrâneo, por meio de um registo de discurso abstracto, amplifica a ideia de “ficabilidade”, isto é, a ideia de “duração” através da obra escrita, alargando-a a toda a Arte: “... a Arte oferece-nos a única possibilidade de realizar o mais legítimo desejo da vida – que é não ser apagada de todo pela morte. (...) ... a única esperança que nos resta de não morrermos absolutamente como as couves é a fama, essa imortalidade relativa que só dá a Arte”. E quase a finalizar, acrescenta: “ A Arte é tudo porque só ela tem a duração – e tudo o resto é nada!”. Inicia ainda o parágrafo seguinte por um discurso repetitivo que termina particularizando o valor do livro: “ A Arte é tudo – tudo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo”.
Relembro, também, Agustina Bessa-Luís. O seu romance A Sibila é essencialmente o tempo de Quina, a protagonista, à procura do ser, isto é, a personagem entrega-se a um tempo absoluto donde resulta a abolição momentânea do tempo, colocando a personagem numa situação mítica. Quina não é apenas um indivíduo vivendo o seu tempo, ela confunde-se com os seus predecessores, em busca do Arquétipo. Quer dizer, passado, presente e futuro estão dispostos num único plano, sendo em certo sentido simultâneos. A própria “Casa da Vessada” representa a fusão dos tempos: nela não se distingue apenas uma existência individual, mas os traços intemporais de uma geração.
Direi o mesmo da nossa Escola. As suas paredes, corredores, salas e objectos guardam marcas do Passado, falam-nos de quantos por lá passaram. Não são testemunhas totalmente mudas.
Como se lê em Os Incuráveis, outro romance de Agustina: “... muito depois da morte, enquanto uma impressão da nossa mão restar na superfície de um objecto que uma vez se tocou, o tempo ainda nos pertence”.
E cito ainda: “Há coisas muito estranhas... uma frase, como um gesto e um rosto sucedem-se intactos duma a outra época ...”.
Depois deste percurso literário – é assim que eu viajo – através de alguns dos magos da escrita, que estudei apaixonadamente com e para os meus alunos, que estudei e que continuo ainda a estudar, que me diz a minha experiência sobre este trinómio PASSADO – PRESENTE – FUTURO?
Professora de Português ao longo de três décadas, tive oportunidade de prosseguir o seguinte objectivo, que considero uma felicidade: “Fazer gostar aos outros aquilo de que gostamos”. Sentimo-nos, deste modo, projectados nos outros, naqueles a quem ensinamos, aprendendo; naqueles que, agora, felizmente, encontramos no nosso lugar. Disse muitas vezes, aos meus alunos: “Se tivesse de escolher novamente a minha profissão, escolheria a mesma.”
Assim se entende nesta perspectiva de Escola, a temática PASSADO – PRESENTE – FUTURO – Bola de Neve que se vai formando ao longo das gerações. É que uma Escola não é apenas uma massa de cimento e pedra. Uma Escola implica toda uma geração que pode ser revivida em qualquer lugar e momento.
E dela fazem parte não só os vivos como os que já partiram, que só estarão verdadeiramente mortos, se os esquecermos.
Permitam-me um momento de presentificação para os nossos Grandes Ausentes, companheiros de trabalho, que viveram connosco lado a lado, partilhando o seu saber, a sua experiência, ajudando-nos a resolver as nossas dúvidas e problemas.
É que de uma Escola fazem parte os que por lá passaram, os que passam agora e os que passarão depois.
Para concluir: creio que todos nos sentimos fortemente ligados a esse espaço – a Escola – que nos une a todos. Portanto, Escola entendida como Geração, como espaço por onde caminhámos grande parte da nossa vida, se não a maior parte e por onde fomos deixando marcas de nós próprios. Razão tem Henri Frédéric Amiel, quando afirma em Fragmentos de um diário íntimo: “Chaque jour nous laissons une partie de nous-mêmes en chemin” («Cada dia deixamos uma parte de nós mesmos pelo caminho»), reflexão que impressionou profundamente Miguel Torga, a ponto de a escolher como epígrafe para os dezasseis volumes do seu Diário.
E essa ligação de que falava faz com que o passado se torne continuamente presente, evoluindo para um futuro a que gostaria de lembrar a mensagem de Sebastião da Gama, de todos conhecida, mas quantas vezes esquecida: “O segredo é amar (...). Amar numa dádiva total (...) sem cálculo nem medida (...) a vida só é vida quando actuante na responsabilidade maravilhosa de nos sabermos vivos de olhos, ouvidos e coração abertos”.
A finalizar, um juízo crítico, que, de certo modo, poderá ser considerado a versão moderna destas palavras de Sebastião da Gama. É de George Steiner, autor de “Errata: Revisões de uma vida”: “Mesmo nas horas piores sou incapaz de abdicar da convicção de que as duas maravilhas que validam a existência mortal são o amor e a invenção do tempo futuro”.
Dra. Maria da Conceição Nogueira – Directora do “Boletim Cultural da Póvoa de Varzim”

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