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quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Prelecção pelo homenageado - Dr. João Marques

Dr.João Marques
EXPOSIÇÃO
Num certo fim de tarde de Setembro de 1978, no átrio desta casa, o Prof. Sequeira Costa, ao apresen-tar por escrito à SOPETE um plano visando (…) a criação de um ambicioso evento que projectasse o nome da cidade além fronteiras, talvez não acreditasse intimamente que os poveiros tomariam como seu esse desígnio.
Dez anos decorridos – ao constatar-se que urgia criar uma estrutura pedagógica que acompanhasse e propagasse ao longo do ano as ondas suscitadas por alguns dos mais eminentes vultos musicais do nosso tempo, nas suas visitas em Julho de cada ano –, foi a vez de a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, logo apoiada pelo Ministério da Educação, erguer um centro de ensino especializado destinado a toda a população (sem discriminação de qualquer estrato sócio-cultural ou faixa etária), mas sobretu-do dedicado aos mais jovens. E foram sucessivamente implantadas estruturas complementares e inter-ligadas em rede cúmplice e afectiva: a Orquestra Sinfónica, o Concurso Internacional de Composição e este Quarteto de Cordas Verazin.
E porquê e para quê este desabrochar de actividades ligadas à Arte dos Sons, na nossa cidade, vivên-cias que só encontrávamos nas grandes capitais, cultivadas – há que o dizer – por elites com formação privilegiada?
Torna-se oportuno referir a constatação do sociólogo alemão Georg Simmel, (no ensaio “A Metrópole e a Vida Mental”, de 1903), segundo a qual já então “(…) a vida moderna nas cidades do Ocidente estava a ser marcada por demasiados estímulos à percepção, situação de que resultava a perda do poder e da possibilidade de concentrar a atenção (…)”. Lawrence Krammer considera que “(…) isto era a essência da modernidade, uma consequência da aceleração drástica do trabalho, dos transportes e das comuni-cações, que viria a acentuar-se um século mais tarde, sob a actual forma digital. (…) Perseguido, em cada esquina, pelo ritmo e pela multiplicidade da vida económica, profissional e social, surpreendido pelo movimento rápido das imagens em mutação (…), o cidadão das metrópoles modernas desenvolve uma concha defensiva contra a perplexidade ou a paralisia. A atenção é reprimida, poupada e, para o mundo, vai apenas a suficiente para evitar ser ferido por este. O ‘indivíduo das cidades’ é portanto rele-gado para uma esfera de actividade mental que é menos sensível e o mais distante possível do âmago da personalidade”.
Debrucemo-nos então sobre algumas das especificidades da chamada música clássica (ou de tradição erudita), apenas porque é o género que tem enformado o núcleo programático do Festival. Foi conce-bida para ser ouvida em concentração mental. “O convite é quase que uma exigência pedagógica”, diz Lawrence Krammer: “(…) as pessoas sabem que esta música deve ser escutada de uma determinada maneira, com um certo respeito ritualizado, em silêncio, segundo o nosso melhor comportamento”. A música que ouvimos há pouco foi escrita inicialmente para executantes em reuniões particulares de âmbito restrito e não para o público dos concertos: uma conversa inteligente entre quatro pessoas, no decorrer da qual surgem propostas, afinidades, afastamentos, especulações, conflitualidade, interroga-ções, ilações (mudando embora de contextos, curiosamente encontramos esse intimismo noutras tradi-ções, como a da música tibetana).
É reconhecido o poder que civilizações tão antigas como a chinesa e a grega já conferiam à música no despertar do pensamento, da afectividade e da sensibilidade. Concentremo-nos todavia no poder espiri-tual que o pensador suíço Johann Georg Sultzer atribuía à atenção musical, em 1771: confrontada com a música, que alia a riqueza emocional à riqueza da técnica dos executantes, “(…) a atenção é total-mente captada pelo desenrolar da harmonia e o ouvido é induzido a um estado de completo esqueci-mento de si próprio, para se concentrar apenas nas emoções refinadas que se apossam da alma”. Ape-sar disso, sabemos hoje que a música não se afasta das emoções da vida contemporânea. (…) Rituais como a aprendizagem de um instrumento e saber tocá-lo a solo ou em conjunto, domínio dos códigos da sua escrita, assistir a concertos públicos e audições privadas, participar em tertúlias artísticas ou simplesmente exercer o sentido crítico, continuam a ser necessários para muitas pessoas, pois a sua prática propicia uma contínua descoberta e redescoberta expansiva, a cada nova audição ou execução, (…) fornecendo um antídoto contra a informação em contínuo estado de saturação de um mundo com-plexo. Continuamos a precisar de algo mais reflexivo e mais ressonante, num sentido mais profundo.
O conceito daquilo que entendemos por “música clássica” foi definido ao longo do século XIX, e transi-tou para o século XX, alargando-se aos dois sentidos temporais (a montante e a juzante). Essa matriz – uma das grandes conquistas civilizacionais – passa a ser o fundamento para a prática e fruição de um público cada vez mais heterogéneo à medida que a generalização da educação pública se vai alargan-do – em claro contraponto ao fenómeno utilitarista dirigido indiscriminadamente às grandes massas e intensamente explorado pelas modernas técnicas de marketing, no qual “Pitágoras, hoje em dia, veria o seu sonho da música das esferas cumprido em qualquer centro comercial”, no dizer de Dietrich Schwa-nitz.
(…) Uma dessas provocações é o poder desta música “mexer” connosco. Apesar da sua notação rigo-rosa (que permitiu a especulação e a experimentação) ou dos vocabulários das novas técnicas van-guardistas do século XX, designadamente as da improvisação e a exploração de meios electrónicos, essa música possui a capacidade extraordinária de se adaptar a uma infinidade de situações (…). É incontestavelmente o portal privilegiado da introspecção individual e a grande linguagem da comunicação.

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