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sábado, 2 de janeiro de 2010

«POR TODO O MUNDO EXISTEM PRISIONEIROS»




A maioria dos analistas - o ignaro cidadão, o erudito, o escriba e quantos de permeio -, exclui das suas conclusões a explosão demográfica do pós convulsão mundial. E tal omissão enviesa todo o pensamento e adensa injustificadamente o cepticismo. Porquanto os problemas não resolvidos em 1945 ganharam uma dimensão de escala humana mais que triplicada.
Desde os Campos Elísios a Darwin e cada vez mais, as pessoas celebram na rua a viragem do ano, um ritual pagão, cósmico, poucos dias depois de muitos interiorizarem o solstício na sua veneração às leis do universo. Para lá das libações há um gregarismo exultante, carnavalesco, a mimetizar todo um ano de pequenas e grandes privações, insucessos de grau díspar e sentimentos confusos.
Disse um dia à mãe do arquitecto e músico Miguel Ângelo, «que presciência abençoada a sua, pôr ao filho, futuro artista, o nome dum dos maiores cultores da arte da Humanidade!». Neste dobrar do ano – que não da década, como a generalidade da imprensa segue erroneamente, as décadas têm dez anos –, assisti à festa, musical e pirotécnica - em frente ao Hotel Baía, um dos ícones da Baía de Cascais, das mais belas do mundo -, com os Delfins e Miguel Ângelo a despedirem-se como grupo na sua terra. No que foi, creio, a maior afluência de gente à localidade num único dia. Foi soberba a festa em madrugada de chuva! «Por todo o mundo há prisioneiros», um dos muitos êxitos dos Delfins, foi particularmente bem recebido, entoado no luar esperançoso.
Esta canção, tenho para mim, assegurava o simbolismo mais ajustado à efeméride, o nascer do Dia Mundial da Paz, o último da primeira década do século 21. Ela representa uma verdade absoluta numa época civilizacional em que, muitos pensaram, convictos, podia bem ser já a do bem-estar.
Mais de dois terços da Humanidade está refém da pobreza, num ambiente de promíscua convivência com a doença, a ignorância e o ódio. Os Objectivos do Milénio das Nações Unidas carecem de nova Convenção e de maior consciencialização global. Os efeitos da descolonização mal resolvida, como a inglesa, perduram em todo o mundo, num grau que pouco tem a ver com os da de Portugal, Espanha, Holanda e França. Como se nada tivesse acontecido! As economias emergentes, como a chinesa, assentam numa escravatura incontável e indizível.
No mundo inteiro, a espada de Damocles dos radicalismos está suspensa sobre as nucas, espírito e corpo indefesos. Muitos dos supostos apologistas da paz falam de guerras salvíficas. Os países, os mais e os menos «avançados», não abdicaram em Copenhaga da produção com taxas de emissão de CO2, assaz venenosas para o planeta. Há teóricos a contradizerem a «calamidade» do efeito de estufa - a merecerem igualmente respeito -, como a do aumento de calor advindo do âmago da terra. Há ainda pensadores a julgarem este ritmo de poluição carbónica passível de coexistência e mais valias acrescidas com o investimento na emancipação do planeta na miséria e na iliteracia.
O logro de Bush e Tony Blair no Iraque produziu extremistas em volume superior ao das madrassas paquistanesas.
Muitos são os encarcerados dentro de si mesmos. O tráfico da alienação mental é ainda de moroso e duro controlo. O jugo psiquiátrico tem o seu cosmos igualmente submisso a vários mundos, o do preconceito a levar a palma aos sobrantes.
Neste Dia da Paz 2010, início do Ano Europeu Contra a Pobreza e a Exclusão, o primeiro discurso reformista estruturante vem dum intelectual influente, conservador, o Papa Bento XVI. É um apelo a ter em conta por todos nas soluções para o mundo, porque racional, assente nos princípios consagrados nas principais «magnas» Cartas da civilização, transversais, nomeadamente «o respeito pelos outros, a educação e a responsabilidade ecológica».
Poucos duvidarão muito, o fenómeno Obama, independentemente dos resultados imediatos, consubstancia um capital de alta expectativa dificilmente menorizável por algum incumprimento. O seu apelo está na boca de cada africano, asiático ou sul-americano lúcido e interventor.
Cerca de 60% dos Europeus escolarizados tem dificuldade em descodificar o mundo, mais de 10% dos norte-americanos não tinham até agora qualquer direito à saúde. O mais simbólico dos muros, o de Berlim, caiu por obra dos homens. Outros têm um epílogo não escrutinável, como o do Texas e Califórnia, o da Cisjordânia, os do Rio de Janeiro e Buenos Aires…, os da pobreza e da intolerância. A alfândega de Shelter Island abriu a 1 de Janeiro há 120 anos, ali esfriaram anseios de mais de doze milhões de emigrantes. Hoje é local de turismo na rota da Estátua da Liberdade.
O importante não está no extermínio dos ricos, qual delírio de Herodes, segundo São Mateus, na matança pela busca de Jesus, ou no holocausto siberiano, por um igualitarismo contra natura, e europeu, anti-semita, contra as minorias étnicas e pensantes, entre os anos 20 e 50 do século passado, replicado depois por Pol Pot, Suharto, Rachid, Karadzic e tutti quanti.
O importante está seguramente na erradicação da pobreza, transversal nas sociedades. A paz entre os povos é tangível, porventura mais célere que a dos espíritos.
Os apelos de Bento XVI e de Obama terão repercussão nos anos que aí vêm. Multiplicar-se-á o impacto das ONG empenhadas na consciencialização, na literacia, no desenvolvimento sustentável, na ecologia e na paz. Temos à porta o antídoto para alguns vírus. O investimento de fundações e mecenas generosos, como Bill Gates, em vacinas para o HIV e paludismo, terá um retorno civilizacional espantoso no curto prazo!
Não há soluções únicas, o mundo é diverso e exige diversidade de meios. As pessoas são diferentes. Só os direitos desde o nascer são iguais. As transferências de excedentes alimentares como as de tecnologia, criando emprego, e o recurso progressivo a energia não fóssil, substituirão o neocolonialismo intelectual dos nossos dias.
Henrique Pinto (Governador 2002/03 do Distrito 1970) - Do blogue: MEDICULT


Cartoon de Zélio (Alves Pinto), 1938. Pintor, jornalista, escritor, artista gráfico e professor mineiro. Editou o jornal Pasquim 21 e foi um dos fundadores do Salão de Piracicaba.

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