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sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Um barulho muito silencioso – Mia Couto

“O ‘rap’ que os jovens cantam nas cidades não é menos moçambicano que o ‘tufo’ das praias do Norte. A escrita poética, carregada de surrealismo, de Luís Carlos Patraquim não é menos moçambicana que a oralidade de um camponês da Zambézia”
Cultura é um conceito tão vasto que pode ser vazado de sentido. O que quer dizer que a cultura se arrisca a ser apenas uma simples palavra. E as palavras, amputadas dos conceitos, são a bagagem mais certa do discurso vazio. A cultura é assunto demasiado sério para ser entregue aos que querem converter a cultura numa palavra oca ou numa prática decorativa. Uma espécie de vuvuzela que serve para agitar um estádio mas que nunca se sabe que equipa se está a apoiar. Não se sabe quem produz barulho, nem o que se quer dizer com esse ruído. Provavelmente, o que se quer é apenas isso: produzir barulho.
A cultura reduzida à dança
Recordo-me - logo a seguir à Independência, nos grandes comícios - dos grandes chefes anunciarem: “agora, vai entrar a cultura”. E subiam ao palco os dançarinos. A cultura era isso, a dança. O serviço da dança era abrilhantar o evento político. E ficava bem claro que a dança era um serviço e os dançarinos eram servidores. Talvez este exercício fosse apenas a memória de um universo em que o político, o religioso e o cultural eram uma única e inseparável esfera? Pode ser que sim. Mais do que inércia de um tempo, aquele modo de usar uma manifestação cultural era uma conveniência.
Os que mandavam, mostravam que eram patrões totais, comandando os assuntos visíveis e invisíveis.
O que pode estar ainda a ocorrer é que a nação inteira seja ainda vista como um grande palco. Para onde sobrem, quando devidamente chamados, os fazedores da cultura. Isto é, os dançarinos da corte.
Cultura reduzida à tradição
A invocação da tradição é outra estratégia para a legitimação do discurso político. Recorrer à tradição pega sempre bem. Ainda que ninguém saiba exactamente o que é a tradição. Mesmo que se suspeite que aquilo que hoje invocamos como valor tradicional tenha sido ontem uma provocadora modernidade.
Esta evocação da tradição não se destina apenas a conquistar uma maior aceitação. O chamado “tradicional” ajuda a definir hierarquias. O que é moderno surge, por via desta ilusão, como “menos” moçambicano.
A capulana que, outrora, foi uma modernidade importada do exterior, é hoje uma credencial de “moçambicanidade”. Esta é a dinâmica da história das culturas, em todo o lugar do mundo. Mas o demagogo, o que quer vazar a cultura da sua condição histórica, ergue a cultura como uma construção eterna e definitiva. O que ele sugere, quando fala (o demagogo fala ou simplesmente discursa?) é que a cultura “moçambicana” sempre foi assim, desde os tempos imemoriais.
A questão cultural que se coloca
É uma questão cultural, dizia-se no chamado tempo da revolução para justificar fosse o que fosse. O fulano maltratava a mulher. Era uma questão cultural. O polícia abusava do poder? Era uma questão cultural. A frase feita sugeria uma acção desfeita. De outro modo: a culturalidade de uma prática era suficiente para a legitimar. E estávamos isentos de fazer fosse o que fosse. O dirigente suspirava de alívio: não se lhe era exigido fosse o que fosse. A sua passividade perante as tantas questões culturais era, ela mesmo, uma questão cultural.
Hoje, a situação mudou. Mas apenas na forma. Na substância, a cultura permanece aquilo que é para as elites de todo o mundo: uma espécie de lixívia para lavar a política. Um espectáculo de cor e luzes para abrilhantar a prática política.
O que estou fazendo aqui é percorrer, apenas ao de leve, uma lista de equívocos que não ajudam a definição de uma cultura interveniente e emancipadora. Por exemplo, ainda está presente a ideia ingénua que a nossa identidade cultural deve ser buscada no passado, como coisa arqueológica. Como se a “cultura” estivesse apenas na raiz. A cultura está em toda a planta: na raiz, no caule, nas folhas, no fruto, nas sementes ainda por germinar. O “rap” que os jovens cantam nas cidades não é menos moçambicano que o “tufo” das praias do Norte.
A escrita poética, carregada de surrealismo, de Luís Carlos Patraquim não é menos moçambicana que a oralidade de um camponês da Zambézia.
A tentação maior, sobretudo nos regimes de ditadura, é eleger uma cultura “pura” ou apenas “mais “pura” que as restantes culturas. Os portadores dessa cultura estão autorizados, pelo direito divino e terreno, a serem mais ricos, mais poderosos. E a reprimirem os de cultura “menos pura”.
Tenho memória vaga de conflitos étnicos que ocorreram durante a minha infância, na cidade da Beira. Milhares de pessoas da Zambézia e de Nampula fugiram para os seus lugares de origem. É bem provável que esses conflitos tenham sido alimentados pelo governo colonial. Mas acho que é simplista explicar apenas assim a génese desses atritos. De qualquer modo, recordo-me bem de gente da Beira justificar-se da proclamada inferioridade dos “outros”, dos “nortenhos”, dos chamados “parapatos”. Alguns me diziam “esses comem cobras, não são como nós”.
Surgia clara a invocação de uma outra identidade, uma outra cultura para justificar que se “limpasse” a “pureza” dos chamados donos da terra.
Uma cultura que só pode dizer no plural
Moçambique é um mosaico de culturas. À força de ser repetida, esta frase (que é absolutamente correcta) corre o risco de não significar nada. Mas pode ser ainda mais grave: pode ser palavreado que encobre uma outra mensagem. E essa mensagem pode equipar a cultura a um mosaico enquanto objecto inerte. Isto é, uma realidade material unidimensional.
De cores várias, sim, mas de um único e já acabado fabrico. Na verdade, o mosaico que somos não é exactamente o de culturas mas de relações entre culturas. Porque, afinal, esse é o segredo de uma política cultural produtiva, capaz de combater a pobreza interior de quem tanto tem falado o Presidente Guebuza. Esse segredo consiste numa cultura que seja não apenas um mosaico mas um entidade viva, uma criatura simbiótica que se orgulha não de uma qualquer inexistente “pureza”, mas da sua mestiçagem permanente. Como toda outra cultura, a nossa só é viva e só é nossa se for a interacção entre as muitas culturas de muitos lugares e múltiplos tempos. De outro modo, a tão festejada “cultura” não passa de uma vuvuzela que não produz senão barulho. E esse barulho é apenas o nome de um enorme silêncio.
Mia Couto
Texto daqui
Foto no Diana-Bar

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