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domingo, 1 de agosto de 2010

Manuel Patrício, ex-Reitor da Universidade de Évora, parceiro em Rotary

"A corrupção é uma inumanidade que deve ser combatida sem contemplações"
Em todas as conferências em que foi convidado por Rotary, Manuel Patrício conseguiu encantar a audiência. Sobre ética, valores ou educação, o ex-Reitor da Universidade de Évora é mestre nas palavras e nas ideias.
O Rotary em Acção não quis perder, por isso, a oportunidade de conversar com o catedrático que encara a actual crise de valores com frontalidade, define-a e aponta caminhos para a resolver.
Diz que a ética tem que impregnar o futuro como a seiva impregna a árvore. Vivemos uma crise de valores? Ou acredita que a crise actual vai refinar os valores da sociedade?
A metáfora da seiva pressupõe que o futuro é a árvore. Sem seiva, a arvora morre. Com seiva insuficiente, a árvore debilita-se e pode vir a morrer. Com seiva envenenada, a árvore morre. Ora a ética é apresentada como sendo a seiva. Logo, a vida e a morte das sociedades humanas, e até da humanidade no seu todo, estão indissociavelmente ligadas à seiva, ou seja, à ética.
Há quem confunda a ética com a moral. Todavia, são diferentes. A ética representa o domínio dos princípios do comportamento dos seres humanos. A moral representa o domínio dos comportamentos propriamente ditos, dos costumes. Os costumes devem realizar os princípios éticos. A meu ver, vivemos uma época em que os costumes, os comportamentos individuais e sociais concretos, contrastam fortemente com os princípios éticos constitutivos do melhor da nossa cultura e da nossa civilização. A meu ver, estamos, pois, a viver uma profunda crise ao mesmo tempo moral e ética. Os valores éticos são nucleares. Mas há outros valores, para além dos éticos. Por exemplo: os valores cognitivos, os valores estéticos, os valores religiosos ou de sentido da vida. Afigura-se-me que a crise é global. E não apenas nas sociedades ocidentais, mas à escala planetária. É a humanidade que vejo em crise.
Mas, o que quer dizer ''crise'' ? … O termo crise vem do verbo grego clássico krinêin, que significa joeirar. Joeirar é separar o trigo do joio. É, pois, purificar. Pode acontecer que esta crise seja de crescimento da humanidade e esta saia mais limpa, purificada, da crise. É possível. É difícil. Temos que ajudar a peneira no seu trabalho.
Defende que a cultura e o património são importantes para fazer face à crise?
Presumo que, quando se refere ao património, está a pensar fundamentalmente no património imaterial e não nos bens materiais. O património imaterial é, penso eu, pode dizer-se que o património espiritual, cultural. Mas é aquele que nos foi legado pelos nossos irmãos humanos que nos antecederam. Irmãos e, na verdade, pais. Daí a palavra património: o legado dos pais. Somos herdeiros. Somos herdeiros culturais. Mas a cultura é como uma fonte: está sempre a nascer água nova. A humanidade está permanentemente a criar a cultura.
E o que é a cultura? A resposta que dou a esta pergunta situa-se no espaço filosófico de uma das grandes escolas neokantianas: a Escola de Baden, no Sudoeste alemão, cujas figuras fundadoras foram, no final do séc. XIX, Willelm Windelband e Heinrich Rickert. Sintetizarei. Distinguiram eles entre a Natureza e a Cultura. Digamos, para simplificar, que a Natureza é o que está aí frente ao olhar de Adão, o primeiro homem. Nada nela é fruto da actividade humana. A Cultura é aquela realidade que o homem, pelo poder criador do seu espírito, desde sempre acrescentou à Natureza. Exemplos: a Linguagem, a Arte, a Religião, a Técnica, a Ciência, a Filosofia, o Direito, a Política … Então eu defino a Cultura desta maneira: a Cultura é aquele domínio da Realidade que o Homem acrescenta à Natureza em virtude da actividade criadora do seu espírito. Basta, creio eu, iluminar os conceitos para concluirmos, sem margem para dúvidas, que é o poder criador do Homem que instaura na Natureza, no Cosmos, aquela realidade que é a Cultura. Nós consumimos Cultura, mas primeiro temos que a criar. A Cultura não é, na sua essência, um produto industrial e comercial, como os que só vêem o dinheiro aparentemente pensam. A Cultura é o brado do triunfo do Homem no Cosmos, na Natureza.
De que forma podem a solidariedade e os valores comunitários contribuir para o fim da crise?
Eu distingo o indivíduo humano da pessoa humana. O indivíduo só pensa em si; vive em função de si, exclusivamente; o outro é para ele ou a presa ou o instrumento, útil ou perigoso. A pessoa é individual mas não se confunde com o indivíduo. A pessoa pensa no outro, só realiza as suas potencialidades e os seus sonhos e ideais com o outro. A pessoa é, por definição, solidária. Ela não separa o seu bem do bem do outro. Os dois bens enlaçam-se. Assim, enquanto o indivíduo é em si mesmo egoísta, a pessoa é solidarista. Vejo presente esta maneira de ver e de viver no próprio coração do movimento rotário. Também distingo entre valores comunitários e valores societários. A palavra sociedade vem da ideia de sócio. O que liga os sócios é o interesse. Mas a palavra comunidade vem da ideia de comum. O que liga os membros de uma comunidade é o afecto, a amizade, o amor. O interesse é importante na vida da humanidade. Mas não pode sobrepor-se ao afecto, à amizade, ao amor. A crise actual tem a sua origem no interesse, na ambição material desmedida, na voracidade ávida do lucro. Portanto, tem de ser o afecto a superar a crise. Têm de triunfar os valores comunitários sobre os meros valores societários. É esta uma bússola para ultrapassar a crise em que estamos mergulhados.
Porque defende que não há educação sem valores?
Repare, desde logo, que a própria educação, no seu conceito mais geral, é vista e vivida como um valor. Todo o ser humano o sabe. Depois, é por meio da educação que nós vamos edificando o mundo humano dos valores. Dos valores vitais, ou de sobrevivência: o homem sobrevive tanto melhor quanto mais extensa e profunda for a sua educação, a sua aprendizagem. Dos valores práticos: é pela educação que o homem aprende a relacionar-se eficazmente com a realidade. Dos valores cognitivos: o conhecimento é um valor essencial para o ser humano. Dos valores éticos: o ser humano aprende, pela educação, a distinguir com acribia o certo do errado, o bem do mal, o que deve do que não deve fazer. Dos valores religiosos: o ser humano sabe que o absurdo o lança no vazio existencial e que o sentido é o que lhe garante a harmonia e reconciliação permanente com a vida. Pergunto: como pode a educação ser alheia aos valores? A autonomia, a liberdade, a dignidade, são valores de importância transcendente para o ser humano. A educação tem que promovê-los e comprometer-se activamente com eles.
O que está na origem da corrupção?
Desde logo: a possibilidade que o homem tem de ser mau, de escolher e seguir o mal. Depois: o facto de poder escolhê-lo e segui-lo. O mundo está cheio de coisas e situações que agradam à parte má do homem: à sua ambição desmedida; à sua vontade de ter, de possuir; à sua vontade de afirmação no mundo, vontade de poder; à sua vontade de gozo material e dos sentidos; ao seu instinto de destruição; à sua inclinação para a falsidade e a mentira; ao seu fascínio pelo horror; à sua vaidade e ao seu orgulho; etc.; etc.; etc.. O corrupto é o corrompido, o apodrecido, o insano. É o homem que vive desvinculado dos valores éticos, que são os da seriedade, da honestidade, da lealdade para com o outro, os companheiros humanos. O corrupto também é o grande mentiroso, o grande falsário, que faz o mal aos outros e o nega com o maior desplante. O corrupto é um monstro, a corrupção é uma monstruosidade. Na origem da corrupção está ao mesmo tempo um egoísmo louco e um desprezo imenso, total, pelo outro, pelo outro que é o companheiro ou irmão humano. A corrupção é, no fundo, uma inumanidade. Deve ser combatida sem contemplações.
Que juízo ético e político faz sobre o funcionamento das instituições democráticas em Portugal?
Não estou satisfeito. Parece-me, de resto, que é este um sentimento bastante generalizado no universo dos cidadãos portugueses. A Justiça funciona mal, a Saúde funciona mal (o risco de colapso do Serviço Nacional de Saúde é real), a Educação funciona mal, as Finanças continuam a ser a ditadura instalada por Salazar em 1928, a insegurança é cada vez maior, o poder legislativo (a Assembleia da República) não é autónomo, sendo claramente condicionado pelo poder executivo (o Governo), o poder Judicial também acusa o mesmo condicionamento e limitações no respectivo exercício, o Presidente da República, que é o Chefe do Estado, não preside de facto à República, não pode realmente chefiar o Estado, o poder político na sua globalidade deixou-se capturar pelo poder económico e financeiro, a corrupção campeia, a impunidade é chocante. Onde pára a ética republicana, que ninguém a vê? Falo como cidadão, tenho o direito e o dever de falar livremente, de dizer o que penso. Falo com a intenção de contribuir para a melhoria da democracia portuguesa.
Acredita que o profissionalismo e a ética podem contribuir para uma diminuição da corrupção?
O mal está generalizado e é profundo. Parece-me que o profissionalismo – ou seja, a competência profissional e a assumpção ética da profissionalidade - são importantes, mas insuficientes para curar o cancro da corrupção que corrói o organismo do País. Os políticos devem apresentar propostas fortes ao povo, para que ele vote como é necessário e seja possível resolver democraticamente o grave problema que a corrupção representa.
Acredita que a falta de ética em Portugal é cada vez mais acentuada?
O mal tem vindo a crescer e atingiu proporções antes impensáveis. Mas também quero acreditar que o País dispõe de tradições éticas e de uma consciência dos valores suficientemente sólida para recusar a sua própria degradação axiológica, enfrentando o problema e resolvendo-o. Não nascemos ontem. Nascemos há quase um milénio. A Europa pode reconhecê-lo ou não, mas somos o Estado-Nação mais antigo do continente, facto que é motivo de orgulho e indubitavelmente nos honra. O regresso a padrões elevados de vida ética triunfará, acredito. Mas temos de lutar por isso.
Texto daqui

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