A utopia do desenvolvimento que conduziria à implantação de uma cultura mundial uniforme foi uma ilusão coberta pela teologia de mercado que rapidamente obrigou a identificar práticas que foram transnacionais no que respeita ao consumo, mas não evitou movimentos exigentes de identificações de natureza étnica, religiosa, ou nacional, com respeito do singular, e da sua permanência.
A frequência com que também recorreu a conceitos, que de resto se tinham vulgarizado nas áreas tropicais, em que Freyre se notabilizou, falando de crioulização, de hibridação, de mestiçagem, não se referia senão a superficialidades de políticas com recurso à tecnologia, e não à integração imaginada pelos mundialistas. A conclusão que os factos impuseram foi que insistir na cultura mundial desvalorizava a relação entre o singular e o universal, uma relação que a crise mundial tem obrigado a considerar, com sinais de que alguns valores dos antigos soberanismos voltam a chamar atenção e a inspirar atitudes defensivas, até no processo europeu em curso.
Trata-se de uma conjuntura que obriga a reexaminar, com firmeza tardia, os anos de desregulação da ordem política mundial suposta pela ONU, em que foi dominante o ultraliberalismo que doutrinou a democracia de mercado, regulado pela proclamada liberdade de escolha dos consumidores. As imagens dominantes eram as transmitidas pelos gestores da oferta, a crise passou a obrigar ao inventário dos efeitos sofridos pelos destinatários. Um dos efeitos que se tornaram evidentes foi que a globalização do sistema financeiro criou um mercado global de capitais, com uma liberdade que nenhum poder político regulou satisfatoriamente, verificando-se um apressado regresso dos responsáveis pelas governações à conquista da benevolência dos eleitorados. Mas seguramente que o efeito mais inquietante está evidente no facto de a geografia da pobreza ter acelerado velozmente a sua abrangência.
A cidade planetária do Norte do mundo, que foi uma expressão maoísta para integrar as duas metades que se enfrentaram militarmente, viu diminuir as suas fronteiras afluentes e consumistas, ao mesmo tempo que a experiência das políticas que esse norte sustentou para o desenvolvimento dos países pobres carece de revisão antes de as adoptar para enfrentar a pobreza que se instala a norte do Mediterrâneo.
Tendo presente as crescentes dificuldades com que as organizações internacionais, com avultado sector privado financeiro a intervir, procuraram no passado restabelecer a solvabilidade dos países cortesmente chamados países em desenvolvimento, sustentando programas de ajustamento muito determinados e orientados pelo reconhecimento de que a sua solvabilidade económica estava em risco, não faltando apelos à prática da austeridade, dirigidos a populações que eram da geografia da fome, e cuja condição de carência se agravou proporcionalmente, o alargamento dessa fronteira da pobreza arrasta consigo igual inquietação.
A intervenção de 1989 do secretário do Tesouro americano Brady assumiu pela primeira vez a necessidade do perdão de dívidas, as vozes dessas populações e Estados clamavam que a dimensão paga do serviço de dívidas já excedia frequentemente o financiamento recebido, e o G-7 passou a ocupar-se desse pedido de regresso à razoabilidade.
O facto é porém que os países pobres resvalam facilmente para a indiferença dos mercados de capitais, e cresce inevitavelmente o apelo a organizações públicas, que assumem mais naturalmente responder aos apelos da pobreza, que tem implicações eleitorais e de segurança previsíveis, mas sem real capacidade de promover o crescimento se não conseguirem a confiança e interesse dos mercados de capitais.
A unidade europeia, em todas as suas valências, não resistirá facilmente à erosão se responder à evolução da fronteira da pobreza, dentro do seu território, com a mesma indiferença com que o Norte afluente e consumista frequentemente olhou para o antigo Sul da geografia da fome.
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